segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Mulher que não consegue esquecer

Jill Price se lembra de todos os dias da sua vida em detalhes.
Sair para comprar pão e leite é uma tarefa corriqueira para a maioria de nós. Vemos várias pessoas no caminho, conversamos com outras, voltamos para casa e, em minutos, esquecemos quase tudo. Para a americana Jill Price, 44 anos, porém, uma simples visita à padaria é inesquecível. As pessoas, os acontecimentos... tudo ficará em sua memória para sempre. Se ela viveu, ela lembra.



Sua condição é tão inusitada que foi preciso criar um nome para defini-la: hyperthymestic syndrome (síndrome da hipermemória). Não é uma doença e não foi provocada por algum acidente; Jill nasceu assim. Ela se lembra de quase tudo desde os oito anos de idade e absolutamente tudo desde os 14, a partir do dia 5 de fevereiro de 1980. O que passaria batido por qualquer outro ser humano é lembrado em detalhes por Jill.


Nada disso, é claro, fica visível ao entrar em sua casa, típica dos subúrbios americanos, onde vive com Hank, um gato de um ano e sete meses que nasceu em seu quintal, cercada por diversas fotos de família — especialmente do marido falecido, Jim — e decoração clássica. “Procurar os cientistas foi uma decisão complicada. Passava por um período difícil, memórias demais, peso demais. Precisava descobrir se não estava doente.”

Seus primeiros contatos para entender o que se passava em sua cabeça foram com o neurocientista James McGaugh e seu colaborador Larry Cahill, especialistas do laboratório de Neurobiologia do Aprendizado e da Memória da Universidade de Irvine, na Califórnia. Jill Price passou por uma série de testes e exames, primeiro para confirmar sua condição e, depois, para aplacar sua preocupação: o estado de seu cérebro. Jill não era portadora de nenhuma doença, mas tratava-se de um caso único na ciência. “Isso foi uma notícia maravilhosa. Tudo ganhou novas perspectivas quando descobri que não existia mais ninguém como eu”, diz.


A fonte do “superpoder” de Jill e dos outros três casos que acabaram sendo revelados depois — Ric Baron, 50 anos; Brad Willians, 51, e uma pessoa cuja identidade ainda não foi revelada — pode ser, segundo exames de ressonância magnética, duas áreas de seu cérebro que são maiores que o normal: uma região do lobo temporal (parte lateral do cérebro que administra a memória) e o núcleo caudado (que também tem um papel nas lembranças e no aprendizado e está associado, em alguns casos, a transtornos obsessivo-compulsivos). Segundo Larry Cahill, essas duas áreas podem estar trabalhando de uma maneira ainda desconhecida, fazendo o cérebro lembrar de atividades que fazemos automaticamente, como pentear os cabelos ou abrir a geladeira. Um dos primeiros indicativos prévios do estudo aponta elementos compatíveis com o transtorno obsessivo-compulsivo, embora nenhum dos pacientes do estudo sofra desse mal.

Os palpites dos especialistas evidenciam que, pelo menos por enquanto, eles não têm certeza de como funciona a cabeça de Jill. “Analisando isso pela linha da psiquiatria, existe gente paranoica e depressiva que tem uma hipermemória seletiva, lembrando precisamente de eventos que reforçam a sua tristeza”, afirma Paulo Bertolucci, chefe do setor de Neurologia do Comportamento da Escola Paulista de Medicina.

“A hipermemória é tão rara que é difícil de estender uma hipótese sobre ela. Muitas pessoas têm esquizofrenia, por exemplo. Com isso, podemos fazer centenas de testes para estabelecer um perfil dos pacientes, alterações em comum entre eles”, diz Bertolucci. Como só existem quatro casos de pessoas vivas com problemas de hipermemória no mundo inteiro, sua avaliação sempre será incompleta, do ponto de vista estatístico.


Aluna mediana

Com sua memória, Jill ganhou fama de detalhista entre família e amigos e, para não ficar com fama de chata, precisa se policiar. “Especialmente com minha mãe procuro não ficar corrigindo muito. Fico impressionada como as pessoas se esquecem de detalhes tão importantes para mim, então acabo parecendo chata ao corrigir”, afirma.

Jill é um prodígio no que se refere às lembranças pessoais. Mas não consegue decorar nada que não goste, tinha problemas na escola e mais ainda na faculdade, já que as lembranças impediam que se concentrasse. “Pensava em meus pais e, imediatamente, memórias ligadas a eles surgiam. Qualquer estímulo provoca as lembranças.”

Às vezes, lembrar é um fardo. Jill explica que nunca se preocupou em evitar situações ruins para se defender: “Acredito que me tornaria em uma pessoa temerária e deixaria de viver, especialmente sabendo que surpresas desagradáveis são inevitáveis”. Mas seu semblante sorridente se fecha quando uma memória em especial surge. Há cinco anos, o marido de Jill saiu para trabalhar e teve um ataque cardíaco. Morreu seis dias depois. Como efeito, ela passou quase dois anos e meio sem trabalhar. “Achei que morreria. Não conseguir esquecer significa não ver a dor diminuir, é sempre a mesma, como se tivesse acabado de acontecer.” Sua voz é calma, como se fizesse de tudo para evitar um banho de emoções.


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Prisioneira da memória: Na casa em que mora, no subúrbio de Los Angeles, Jill Price vive cercada de fotos de família. E de memórias tão vívidas quanto no momento em que aconteceram.
Crédito: Gettyimage
Aos poucos, Jill conseguiu se recuperar. Sentou no sofá de Oprah Winfrey, a mais famosa apresentadora de TV dos Estados Unidos, e foi ao programa da jornalista Diane Sawyer, no qual respondeu a uma série de perguntas sobre séries televisivas com 100% de precisão (ela adora seriados). Essa turnê midiática entrou na vida de Jill Price em 2006, quando o primeiro artigo técnico foi publicado e gerou repercussão mundial. “Fiquei assustada com o fato de estarem falando a meu respeito na China.”

É o preço da fama. “Recebi uma oferta de US$ 30 mil para filmarem um documentário sobre minha vida, mas recusei. Não há nada para filmar, afinal, tudo que acontece de interessante está na minha cabeça e ali as câmeras não entram.”

JILL PRICE, 44 ANOS, LEMBRA DE TUDO DESDE OS 14. SÃO MAIS DE 12 MIL DIAS ARMAZENADOS EM SUA MEMÓRIA

Jill mantém extensos diários de sua vida. “Comecei a escrever como forma de organizar tudo aquilo que me lembrava e muita gente dizia que eu decorava, mas era parte da minha mania de organização”, afirma. É seu modo de compensar pelo caos das lembranças desordenadas em sua mente. “É comum me dizerem que tenho uma noção problemática do tempo [por vivenciar tudo ao mesmo tempo], mas é o contrário, pois tenho a exata noção de cada dia, coisa que as outras pessoas não têm.” São mais de 12 mil dias armazenados na memória.

Basta dizer uma data ou um assunto e pronto, turbilhão a caminho. Por exemplo, o filme Guerra nas Estrelas. “Lembro de estar sentada num cinema, depois de ficar numa fila que dava volta no quarteirão e, poucos dias depois, ter ido para o acampamento de verão e ter que aguentar aquela música tema tocar em todas as rádios e em qualquer toca-fitas portátil durante um mês.”

Banco de dados


A memória de Jill Price está pronta para ser acessada como um sistema detalhadamente indexado — especialmente por data — e que exibe resultados em vídeo. “No meu caso, se não me concentro muito, faço tudo com uma tela dividida — de um lado a realidade e do outro a memória, correndo desenfreadamente de acordo com meu humor ou estímulos ao meu redor.”

ALÉM DE JILL PRICE, SÓ MAIS 3 OUTROS CASOS DE HIPERMEMÓRIA FORAM CONFIRMADOS NO MUNDO

Esse foi um dos elementos que despertou o interesse de James McGaugh. Ela não precisa lembrar ou se esforçar para isso. É como se todas essas imagens estivessem flutuando na superfície de sua memória e pudessem ser acessadas instantaneamente. Mais que lembranças, são experiências, portanto, são revisitadas em seu formato completo: imagem, sensações, sentimentos e reações. Diferente de outros célebres casos de memória extraordinária, Jill Price não tem um mecanismo, uma razão ou um modo de ligar ou desligar sua habilidade, é parte intrínseca de sua existência. Por isso só se lembra do que acontece com ela, tem dificuldade para decorar, não sabe letras de músicas na íntegra, mas se elas começarem a tocar ela vai acompanhar perfeitamente e sem errar. “Adoraria ter um dia meio avoado, sem tanta coisa na minha cabeça para saber como é”, afirma.

OS DIÁRIOS QUE JILL ESCREVE HÁ QUASE 40 ANOS SOMAM MAIS DE 1.000 PÁGINAS
Em 2008, lançou nos EUA o livro A Mulher Que Não Consegue Esquecer, que a Editora Arx traduziu para o português no começo deste ano. “Quero ajudar outras pessoas e o livro foi parte de um longo processo científico com o mesmo valor da publicação da pesquisa.” Mais de 3 mil pessoas já contataram a Universidade de Irvine depois que Jill revelou sua identidade, começou a falar com a imprensa e lançou seu livro.


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Trecho dos diários que Jill mantém há quase 40 anos. "É uma forma de organizar minhas lembranças", diz
Crédito: Gettyimages
“Imaginei que a decisão de publicar o livro ou me identificar fosse opcional, mas meu pai disse algo muito sábio: ‘você deve isso à sociedade, desde o momento que abriu essa porta para sua condição; não é mais sua opção, é um dever’”, afirma. “Os médicos nunca vão poder mudar minha realidade, mesmo que eu quisesse. Então só o fato de ter motivado esse novo campo de estudos valeu todo o esforço e a exposição. Quem sabe não encontram a cura para o mal de Alzheimer por conta disso? Pensamento positivo também ajuda.”

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